quarta-feira, 26 de julho de 2017

QUANDO O DINHEIRO DO CRIME AJUDOU A CONSTRUIR ESCOLAS...

Frequentei uma escola primária do Barreiro (a da Verderena) e, como todos os miúdos da então vila-operária, fiz o meu exame da 4ª classe -no ano de 1955- na ainda popularmente chamada 'Escola Régia'; que, oficialmente, já tinha o nome do 'filantropo e mui benemérito' Conde de Ferreira. Cuja denominação a dita escola conserva neste ano de 2017, já tão distante dos meus tempos de menino de bata branca... Essa escola foi fundada no século XIX e fez parte de um conjunto de 120 estabelecimentos públicos de ensino básico, realizados com dinheiro deixado, para esse efeito, por Joaquim Ferreira dos Santos (1782-1866), 1º conde de Ferreira. Homem que, no reinado de D. Maria II, apoiou -com avultados fundos- a sua causa política e que, como agradecimento, recebeu cargos e honrarias que nunca mais acabam. Ele, que era filho de agricultores pobres do norte do país e que, para ganhar a vida, teve de emigrar (ainda novinho) para o Brasil, onde foi um modesto caixeiro. Mas, espertalhão, Ferreira rapidamente subiu e se evidenciou no mundo dos negócios, acumulando uma fortuna de milhões. Mas essa fortuna, que, mais tarde, ele acabaria por transferir para o país-natal, fortaleceu-a o futuro fidalgo com os negócios que fez em África. Onde comprou e transportou para o Brasil cerca de 10 000 escravos. Dez mil desgraçados arrancados pela violência à sua terra de origem e aos seus familiares, para irem sofrer a sua triste condição nas plantações da América do Sul; sem horários, sem salários, mas sujeitos à brutalidade dos manuseadores de chibatas. Tal como reza a História e já é do conhecimento geral. A escravatura foi uma das grandes tragédias da História Universal e o conde de Ferreira, o filantropo (que na sua juventude chegou a frequentar um curso de pré-seminarista), tirou proveito do drama atroz vivido por milhares de seres humanos. Quando eu era miúdo e (espicaçado pela minha imensa curiosidade) perguntava quem tinha sido o conde de Ferreira, respondiam-me, invariavelmente, os adultos questionados, que fora um ilustre e generoso cavalheiro que enriquecera no Brasil e que consagrara grande parte da sua fortuna a construir escolas e hospitais... Esquecendo (ou não sabendo) os tais adultos o lado mais sombrio dessa personagem; que foi Par do Reino, conselheiro da rainha, feito sucessivamente barão, visconde e finalmente conde. A quem foram entregues as comendas da Ordem de Cristo, de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e até, em Espanha, a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica. Penso eu que, recompensado com tantas e tão 'virtuosas cruzes', o homem estará no céu. -Mas onde estarão agora aqueles que ele contribuiu para lançar na escravatura e tiveram de sofrer, durante anos a fio, as agruras de uma vida de miséria e de imerecidos e cruéis castigos ? Esses, apenas deixaram na memória colectiva da Humanidade uma imagem difusa, uma recordação vaga, mas que devia envergonhar-nos. Eu cá, se mandasse neste país (e ainda bem que não !), exigia que se apagasse o nome do 'benemérito' conde de Ferreira da fachada de todas as escolas que, por cá, ainda têm o seu nome. No Barreiro e em todas as outras cidades e vilas, onde elas foram erigidas com o dinheiro do crime. E isso era o mínimo que eu poderia fazer em homenagem àqueles que ele ajudou a escravizar.

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