terça-feira, 15 de agosto de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (5)


Este texto foi publicado (em Março de 2002) no «J. do B,», com o título de «FRAGATAS DO TEJO». E corresponde à ideia que eu me fiz (para além de informação colhida em diversas fontes) desses barcos de trabalho (à vela), que eu ainda conheci -em grande número e em plena actividade- no estuário do maior rio peninsular. Algumas pequenas modificações do texto foram necessárias, para o actualizar.

FRAGATAS DO TEJO

Em meados da década de 60 (do século XX, obviamente) eram ainda cerca de mil as fragatas do Tejo, que navegavam nesse mar interior a que se assemelha o maior dos nossos rios. Essa navegação fluvial fazia-se, geralmente, entre as diferentes terras da borda d'água e a capital, para onde as activas fragatas levavam areia, cereais, tijolos, cimento, cortiça e muitas outras mercadorias necessárias à indústria e comércio locais. E de onde traziam, para diferentes localidades da beira rio, diferentes outros produtos.
As fragatas de maior porte podiam deslocar mais de 100 toneladas e medir uns 25 metros de comprimento. Barcos de casco robusto e artisticamente decorado (sobretudo à entrada das duas câmaras), as fragatas do Tejo estavam equipadas com um único mastro (inclinado para a ré), que envergava um grande vela de carangueja e um ou dois panos de proa. As fragatas eram, geralmente, tripuladas por 4 homens (o arrais, o camarada e 2 moços), que, para além de assegurarem a navegação das ditas embarcações, se transformavam -no início e no término de cada viagem- em esforçados carregadores e descarregadores de mercadorias.
-Quem não se lembra de ver os fragateiros nos cais do Barreiro, do Seixal, de Alhos Vedros, da Moita e de tantas outras localidades ribeirinhas -vergados sob o peso de enormes fardos- correndo (na execução de verdadeiros números de equilibristas) sobre compridas e flexíveis pranchas ?
A lida dos fragateiros era de tal modo violenta, que exigia a ingestão de copiosas refeições. Eu lembro-me, por exemplo, de ver, quando era gaiato, um desses valentes e rijos trabalhadores, natural da já citada vila de Alhos Vedros e grande amigo da minha família, 'atacar' descomplexadamente, almoços que podiam compor-se de 1 kg de bacalhau (produto alimentar relativamente barato em meados do século transacto), de 5 kg de batatas e de 1 litro de vinho tinto. Ou de o ver optar, em substituição do 'fiel amigo', por uma caldeirada (pescada e primorasamente cozinhada pelo próprio) que, em circunstâncias normais, daria para 3 ou 4 pessoas. Simplesmente impressionante ! Mas assim o exigia o organismo de gente que, para ganhar a vida, não hesitava 'atirar-se' a volumosos fardos de cortiça que chegavam a pesar a 'bagatela' de 100 kg !
Diz-se que a típica fragata do Tejo apareceu no curso inferior do rio há já muitos séculos. Há até peritos na matéria que pretendem e afirmam que o seu antepassado mais longínquo era uma embarcação da Idade Média, cuja configuração não seria muito diferente da daqueles barcos que os camarros da minha geração ainda chegaram a conhecer às centenas e em plena actividade. Muitas dessas embarcações foram construídas no Barreiro, no tempo em que então vila dispunha de uma indústria naval na sua vasta zona ribeirinha. Armando da Silva Pais refere (em «O Barreiro Antigo e Moderno») a existência de estaleiros, onde foram realizados alguns desses barcos, nomeadamente em Alburrica, no esteiro que banha também a actual rua Miguel Pais e em vários outros sítios da terra.
A fragata do Tejo rebocava, quase sempre, uma pequena lancha -a catraia- que servia para facilitar as manobras de atracação e, essencialmente, para rebocar o barco-mãe quando se fazia notar a falta de vento. Nessas condições, um membro da tripulação tomava nela lugar e, à força de braços e de remos, tentava safar a fragata da indesejável e prejudicial calmaria.
Depois de, no rio Tejo de finais dos anos 60 (como já acima referi), as fragatas terem cedido o seu histórico lugar a unidades motorizadas, algumas delas ainda foram desguarnecidas de mastros e velas e transformadas em banais batelões. Que acabaram, todavia, por desaparecer, também eles, das águas do estuário, vítimas da modernidade. Eu ainda assisti, com sentida mágoa, confesso, ao fim inglório dessas úteis embarcações, vendo apodrecer os seus cascos no lodo dos esteiros do grande rio. Hoje, pouca coisa resta delas. Tive, no entanto, a ocasião de ver algumas dessas nossas velhinhas fragatas atracadas em portos algarvios. Passavelmente modificadas -já que transformadas em barcos de recreio- e ostentando bandeiras estrangeiras. Holandesas, sobretudo. De realçar é o facto de alguns municípios de localidades estuarinas terem tido sensibilidade para recuperar e restaurar algumas fragatas e varinos (este último é da família das fragatas, mas mais pequeno e com características algo diferentes no que respeita o casco), como foi o caso das Câmaras do Barreiro, da Moita, do Seixal, de Vila Franca de Xira, etc., que permitiram salvar alguns desses barcos à vela e transmitir às gerações vindouras esse património. Que faz da memória colectiva dessas comunidades.

(M. M. S.)

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