quinta-feira, 21 de setembro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (9)

«A MULETA DE PESCA BARREIRENSE» - Com este título, foram publicadas (em data de 22 de Fevereiro de 2002) no semanário regional «J. do B.» estas linhas referentes a uma curiosa (e desaparecida) embarcação da qual já ninguém se lembra. A não ser, ainda e porventura, alguns velhinhos, com idades a rondar os 100 anos.  Vou reproduzir aqui esse texto, apenas com algumas alterações de somenos importância. Ei-lo :

É sabido que o Barreiro foi, em tempos que já lá vão, uma importante terra de pescadores. E também de marítimos exercendo outro género de fainas, tais como, por exemplo, a do transporte fluvial de passageiros e mercadorias entre a nossa industriosa cidade, a capital portuguesa e outras localidades da borda d'água.
O trabalho específico desses barreirenses do passado cumpria-se, essencialmente, no espaço navegável do Coina e do estuário do Tejo, mas podia estender-se, também e por vezes, muito para além da barra do maior dos rios ibéricos.
Os 'camarros' ligados professionalmente a tais actividades residiam, como é natural, nas zonas de praia que envolvem a sua terra natal. Zonas onde varavam as suas embarcações e onde existiram, desde recuadas épocas, indústrias de construção naval e de reparação de barcos. Segundo refere Armando da Silva Pais num dos seus indispensáveis livros sobre a História local, «O Barreiro Antigo e Moderno», o último desses estabelecimentos industriais pertenceu a Francisco José Bravo e cessou a sua actividade em 1914.
Para poderem exercer esses seus ofícios, os marítimos barreirenses utilizaram vários tipos de embarcações. As silhuetas de algumas delas (fragatas, varinos e botes, por exemplo) permanrcem vivas na memória de muita gente. E alguns dos nossos conterrâneos mais idosos e mais lúcidos talvez ainda se recordem (como acima sugeri) de terem observado, na sua meninice, o casco bojudo e o velame, deveras original, das derradeiras muletas 'barreireiras'.
Esse tipo de embarcação que, ao que parece, perdurou até aos anos 20 (do passado século, obviamente) também era comum aos marítimos do Seixal. Daí que a muleta figure na heráldica municipal das duas cidades vizinhas. Aliás como elemento principal dos respectivos brasões de armas.
Refira-se agora, depois deste intróito, que a muleta era, ao que se presume, um barco de origem mediterrânica; e que se desconhecem as circunstâncias e a época exacta (talvez no decorrer dos séculos XVII ou XVIII) da sua introdução no estuário do Tejo. Há até quem veja na muleta barreiro-seixalense uma parente afastada de certa barca catalã e da 'paranzella', uma embarcação usada pelos insulares da Itália ocidental.
A muleta era um barco de casco robusto e arredondado, que estava equipada com um aparelho algo complexo, compreendendo mastro, paus e vergas, para além de de uma dezena de panos de diferentes formas e dimensões. Destinada, em princípio à pesca de arrasto, a muleta dispunha de uma tripulação de mais ou menos quinze homens.
Media entre 10 e 15 metros de comprimento e podia arvorar mais de 170 m2 de vela, o que era considerado extraordinário para uma embarcação com as suas dimensões. O seu mastro era curto e acentuadamente inclinado para a vante. Sustinha uma verga muito comprida (de alongamento duas vezes superior ao do mastro), na qual se içava a vela de maiores proporções. A muleta estava ainda equipada com dois compridos paus (os 'botalós'), que, partindo de meia nau, se prolongavam muito para além da proa e da popa da singular embarcação. Esses paus serviam para hastear parte do restante velame e para fixar alguns dos cabos necessários à utilização da 'tartaranha'.
Além da sua vela principal, que era triangular (uma vela latina, pois), a muleta envergava panos que eram designados, segundo a sua forma e serventia, pelos bizarros nomes de 'varredouras' (de cima ou de baixo), 'muletins', 'toldos' e 'cozinheira'. Apesar de extraordinário, tal conjunto vélico conferia a este desaparecido barco de pescadores uma silhueta das mais airosas. Facto que se pode comprovar através do visionamento de algumas fotografias, desenhos e pinturas que perenizaram a sua recordação.
A 'tartaranha', que acima referimos, era uma rede de arrasto em forma de saco, manipulada lateralmente pelos homens das muletas. Curiosamente, em determinada altura (início do século XIX), as leis vigentes no nosso país reservaram a exclusividade do seu uso aos pescadores da Arrentela, do Barreiro, dos Olivais e do Seixal. O peixe capturado pelas muletas, nomeadamente pelas embarcações barreirenses desse tipo, destinava-se, sobretudo, ao abastecimento da população de Lisboa, cidade para cujos mercados ele (o pescado) era tranferido diariamente, graças à utilização das 'enviadas', barquinhos velozes, concebidos para assegurar essa função.
As muletas timham por zona habitual de pesca a barra do Tejo e uma porção da costa portuguesa que se estendia, 'grosso modo', da Nazaré até ao cabo Espichel. No supracitado livro de Armando da Silva Pais (que foi uma das diversas obras de que nos socorremos para podermos redigir estas despretensiosas linhas), colhemos os nomes de todas as muletas existentes no Barreiro por volta de 1875. Essa relação, que foi fornecida ao autor de «O Barreiro Antigo e Moderno» por António José da Loira, menciona as seguintes embarcações : a «Bexiga», a «Saloia», a «Gaiola», a «Joana», a «Bolacha», a «Patarata», a «Larga-a-Rolha», a «Estrada-de-Ferro», a «Choca», a «Zabumba» e a denominada «Os Leões».
Os tripulantes das muletas, aliás como os demais pescadores barreirenses de finais do século XIX, usavam um traje que, no essencial, era constituído pelas seguintes peças vestimentares : camisola de lã em tons amarelados, colete carmesim, cinta vermelha e calças castanhas. Na cabeça, usavam esses homens um tradicional barrete vermelho com dobra verde. Calçavam meias altas de lã branca (até ao joelho) e botas de cano de meia-perna.
Para terminarmos estas linhas sobre a 'muleta barreireira' (nome pelo qual esse barco também era conhecido), informamos aqueles que tiveram a santa paciência de nos ler do seguinte : poderão, se quiserem, admirar no nosso riquíssimo Museu de Marinha (que funciona, como é do conhecimento geral, numa ala do mosteiro dos Jerónimo) alguma preciosa documentação sobre o veleiro aqui evocado. Com efeito, existem no património exposto dessa prestimosa instituição, uma série de fotografias (datadas do início do século XX), gravuras e pinturas realizadas por artistas que viveram nesse já longínquo tempo das muletas. E que tiveram a feliz ideia de reproduzir as ditas embarcações, para regalo dos nossos olhos.

(M. M. S.).

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