quarta-feira, 20 de setembro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (8)

«O PRIMEIRO COMBATE ENTRE NAVIOS COURAÇADOS MODERNOS». Tal é o título desta crónica escrita há mais de 10 anos, mas que -por falta de publicação adequada à introdução deste tema- se manteve inédita. Até hoje.

Em 9 de Março de 1862, teve lugar no estuário do rio James, perto da localidade de Hampton Roads (na Virgínia, EUA), um acontecimento que podemos muito bem considerar como o primeiro episódio da guerra naval moderna. Um combate memorável, no qual participaram dois inovadores navios couraçados : o «Monitor», da marinha federal norte-americana e o «Virginia» (ou «Merrimac», nome pelo qual também é conhecido), uma unidade pertencente à armada da efémera Confederação dos Estados do Sul.
Antes de nos lançarmos no relato deste histórico evento, talvez seja conveniente abrir aqui um parêntese para situar, rapidamente, de maneira sucinta, o contexto em que se inscreveu esse novo capítulo da guerra naval. Vejamos então : em inícios da década de 60 do século XIX, algumas regiões do sul dos Estados Unidos decidiram separar-se politicamente do resto do país fundado por George Washington e seus pares. Refira-se que os 'pais' da constituição norte-americana haviam tomado em consideração esse direito e que a eventualidade de um ou mais estados poderem abandonar a União estava devidamente consignada e garantida no documento fundamental da nação. Apesar disso, o antagonismo político entre o Sul (cuja economia era essencialmente agrícola e se apoiava na exploração, em larga escala, de mão-de-obra escrava) e o Norte (industrial e abolicionista) sobrepôs-se à legalidade e foi-se agravando progressivamente, até se transformar num renhido conflito armado, que eclodiu, oficialmente, no dia 12 de Abril de 1861.
A partir daí, as forças fiéis ao governo federal começaram por impor um severo bloqueio naval aos portos sulistas, de modo a estrangular a economia dos rebeldes (termo pelo qual eram, geralmente, designados os secessionistas), que assentava na exportação -principalmente para a Europa- da sua produção de algodão e de tabaco e na importação de produtos manufacturados e de bens de consumo corrente provenientes do Velho Continente, nomeadamente de Inglaterra e de França.
Prosseguindo o fio da História, cumpre-nos agora referir que foi, pois, para tentar 'furar' esse bloqueio naval, que a asfixiava, que a Confederação dos Estados do Sul resolveu equipar a sua marinha de guerra com um navio capaz de resistir ao fogo mortífero da frota inimiga e que, ao mesmo tempo, lhe pudesse causar baixas irreparáveis e abrir brechas no apertado cerco que os nortistas impunham aos seus portos; situados na costa atlântica e no golfo do México. Nesse transe, os engenheiros navais confederados procederam, em grande segredo, à conversão de uma das suas velhas fragatas, a CSS «Virginia». Depois de lhe terem arrancado os mastros e suprimido o respectivo velame, os sulistas dotaram-na de uma superestrutura  que, vista de flanco, apresentava uma forma trapezoidal. Fortemente blindada, já que a dita superestrutura fora inteiramente revestida por compactas placas de aço, o renovado navio era propulsionado por uma máquina a vapor e impressionava, igualmente, pelo facto de estar eriçado de peças de artilharia de forte calibre.
Colocado sob o comando do capitão Franklin Buchanan, um oficial reputado pelo sua competencia (adquirida, outrora, a bordo dos navios da União), o poderoso couraçado da Confederação teve o seu baptismo de fogo no dia 8 de Março de 1862. Nesse dia, nas águas da vasta baía de Chesapeake, o «Virginia» atacou, sucessivamente, três vasos de guerra da marinha unionista -as fragatas «Minnesotta», «Cumberland» e «Congress»- afundando-os sem remissão. Segundo o testemunho de alguns membros das guarnições desses navios nortistas, que conseguiram escapar ilesos à chacina provocada pela intervenção do formidável couraçado da armada confederada, os projécteis disparados pelos artilheiros das suas fragatas escorregavam, literalmente, pelos flancos inclinados e chapeados do «Merrimac» (o outro nome atribuído ao navio «Virginia», como já acima referimos), perdendo, assim, toda a sua eficácia.
Esta vitória estrondosa dos sulistas não teve, porém, continuidade. Constituiu um caso isolado nesse conflito fratricida, nessa guerra civil atroz, que foi o afrontamento entre estados. É que, em Washington, o Ministério da Guerra tomara, atempadamente, conhecimento (graças a informações detalhadas comunicadas pelos seus espiões) da realização do temível navio inimigo. E, prudentemente, encomendara, também ele, a construção de um navio blindado, embora com com características próprias. Esse navio couraçado nortista, que haveria de receber o nome de «Monitor», fora concebido (a troco de 275 000 dólares) por um certo John Ericsson, um engenhoso emigrante de origem sueca.
Construído em apenas 100 dias, -nos estaleiros navais de Greenpoint, Nova Iorque- o «Monitor» nada tinha de comum, à excepção da blindagem, com o seu perigoso rival sulista. De menores dimensões, e por essa razão menos impressionante do que o vaso de guerra dos adversários, o novo navio dos federais era constituído por uma plataforma oblonga, quase submersa, da qual sobressaía uma torreta móvel e de forma cilíndrica, da qual afloravam dois poderosos canhões de 11 polegadas. O «Monitor» estava equipado com uma máquina a vapor, que, para além da propulsão, também fornecia a energia necessária à movimentação giratória da torreta. O comando do «Monitor» foi confiado ao tenente John Worden, que recebeu ordens da sua hierarquia para afrontar o inimigo logo que a ocasião se apresentasse.
Curiosamente, essa oportunidade surgiu muito rapidamente e o inevitável embate entre os dois monstros de aço ocorreu horas depois da espectacular vitória obtida pelo «Virginia»/«Merrimac», na baía de Chesapeake, contra as supracitadas fragatas dos nortistas. Esse autêntico choque de titãs teve, com efeito, lugar no dia seguinte -a 9 de Março de 1862- nas águas barrentas do estuário do rio James. Mas passemos, agora, a relatar o que realmente aconteceu nesse memorável dia : depois de terem estabelecido contacto visual, os dois navios lançaram-se, resolutamente, ao encontro um do outro. E, assim que a distância o permitiu, os novos couraçados começaram a alvejar-se mutuamente, tentando, ao mesmo tempo e mercê das hábeis manobras dos respectivos timoneiros, encontrar a posição mais adequada para alvejar os pontos vulneráveis do adversário. Embora a luta parecesse desigual, já que o «Merrimac» era três vezes maior do que o seu rival e estava superiormente armado (com 10 bocas de fogo), a verdade é que o «Monitor» compensava essa aparente desvantagem com a sua melhor capacidade de manobra e com o facto do seu comandante saber tirar proveito de uma silhueta baixa e, por consequência, menos exposta aos tiros do inimigo.
O combate desenrolou-se durante três longas horas (quatro, segundo certas fontes), sem que, depois de terminado, se tenha podido atribuir a vitória a um dos navios intervenientes nessa luta. Foi, pois, um combate sem triunfador nem vencido. Os estrategas da guerra naval, que analisaram minuciosamente todas as fases deste primeiro confronto entre couraçados, acharam que a marinha militar tiraria, no futuro, vantagens em equipar-se com navios dotados do binómio tecnológico vapor-hélice (comum aos dois navios) e armados com reparos móveis de artilharia, idênticos àquele que equipava o «Monitor».
Diga-se agora, para satisfazer a natural curiosidade de quem nos lê e que, eventualmente, se possa interessar pela temática naval, que o «Monitor» naufragou a sul do cabo Hatteras, no dia 31 de Dezembro de 1862, durante uma tempestade. E que fez parte de uma classe de navios que compreendeu mais duas unidade em tudo idênticas, que foram baptizadas, respectivamente, com os nomes de «Galena» e de «New Ironsides».
E, para concluir estas linhas, talvez seja interessante sublinhar (embora isso já seja outra história) que : a Guerra Civil -também chamada guerra da Secessão Sulista-  terminou no dia 9 de Abril de 1865, com a rendição incondicional, em Appomatox, do  general Robert Lee, comandante-chefe das tropas confederadas; que, na verdade e apesar do que aqui deixámos escrito, a marinha dos dois antagonistas não representou, nesse conflito, um papel relevante, pois as grandes e decisivas batalhas da Guerra Civil foram travadas pelos exércitos em terra; que na guerra em causa morreram, segundo fontes obviamente contraditórias, entre 600 000 e 1 000 000 de pessoas; que o referido conflito terminou com o retorno forçado à União dos estados dissidentes, facto que contrariava -como já foi dito- a letra da constituição dos Estados Unidos da América; que o presidente Abraão Lincoln (que foi assassinado cinco dias depois de consumada a vitória dos seus exércitos, por um fanático da causa confederada) afirmou publicamente que a abolição da escravatura (ainda hoje apontada, por alguns, como tendo sido a causa principal da eclosão deste conflito) foi apenas um pretexto secundário nesta guerra. E que aquilo que o motivou verdadeiramente, a ele Lincoln, na sua encarniçada luta contra os confederados foi a intransigente defesa da União e a reintegração na dita, dos estados secessionistas do Sul.

(M. M. S.).

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