domingo, 24 de setembro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (11)


«UM LUGRE BACALHOEIRO BARREIRENSE : O 'HORTENSE'» - Este texto nunca foi publicado por extenso. Parte das informações que contém, foi, todavia, publicada neste blogue -em 22 de Outubro de 2014- com o título seguinte : «Recordações do 'Hortense'... e outras coisas»

As minhas recordações do lugre bacalhoeiro «Hortense» devem datar de inícios dos anos 50 do passado século. Era eu menino e morava no planalto quintalombiano (onde hoje se ergue a vila de Santo André) em casa próxima da antiga seca da Telha -pertencente à Casa Bensaúde- onde este navio tinha, no sítio da Azinheira Velha, a sua base. Desde muito cedo, habituei-me a vê-lo fundeado nas águas tranquilas do rio Coina, junto aos outros navios do mesmo armador, que respondiam pelos nomes de «Gazela 1º», «Creoula» e «Árgus». Uma frota linda (a meus olhos), que, toda ela sobreviveu às agruras do tempo, à excepção do navio em apreço : o «Hortense»; um veleiro de 3 mastros, tal como o já referido «Gazela 1º», embora de construção mais recente. Lembro-me muito bem da excitação que a chegada destes navios provocava em mim e na malta da minha idade, que, aquando da sua aproximação à ponte (ferroviária) do Seixal, nos levava até ao paredão da Caldeira do Alemão (ali, junto à praia da Copacabana) para os ver percorrer, majestosamente, as últimas centenas de metros de uma viagem que os havia trazido dos longínquos e frígidos mares da Terra Nova e/ou da Gronelândia.
O «Hortense» foi construído no ano de 1929, nos estaleiros navais da família Mónica, da Gafanha da Nazaré (Aveiro), e participou em 31 campanhas consecutivas de pesca ao bacalhau. O que é obra e digno de se realçar ! Era um navio com casco em madeira, arvorando (como já se disse) 3 paus e o velame característico dos lugres portugueses da primeira metade do século XX. Apresentava uma arqueação bruta de 373,68 toneladas (porte de 906 000 quilos) e as seguintes dimensões : 51,90 metros de comprimento fora a fora por 9,93 metros de boca por 5,16 metros de pontal. Não recebeu motor auxiliar. A sua tripulação completa andava à volta dos 45 homens, entre marinheiros e outro pessoal de bordo e os pescadores dos dóris. Depois de tantos e tantos anos de actividade, o lugre «Hortense» (que é como quem diz da Horta) foi desactivado em meados dos anos 60, pelo facto da pesca nos Grandes Bancos começar a requerer navios mais modernos e mais rentáveis, mas também e sobretudo porque o veleiro em questão apresentava sinais de vetustez evidente e que o seu estado e uso poderiam colocar em perigo o navio e a sua tripulação. Já perto do fim da década, o seu armador -a Parceria Geral das Pescarias- foi instado pelo poderoso almirante Henrique Tenreiro -principal dirigente da Junta Central das Casas dos Pescadores- para ceder o navio à dita Junta, com a promessa de fazer deste lugre um navio-museu. Consumada a cedência forçada do «Hortense», o navio permaneceu fundeado (e abandonado) no mar da Palha. E, um dia, quebrou as amarras devido a rija ventania e, desgarrado, foi empurrado para uma praia do Lavradio, onde encalhou. Completamente deixado ao abandono pelo almirante Tenreiro (que, na realidade, nunca passou de contra-almirante), o velho navio da Azinheira Velha, com tantas campanhas feitas nos mares longínquos do bacalhau, foi vítima de um incêndio (causado por razões não-esclarecidas), que devorou o seu venerável casco. E assim 'morreu' ingloriamente um veleiro com tantos pergaminhos enquanto navio de trabalho. Os seus congéneres da Telha sobreviveram todos. O «Gazela 1º» foi parar a um museu de Filadélfia, que o restaurou e lhe deu uma segunda vida; o «Creoula» é agora um conhecido e muito admirado Navio de Treino no Mar, ligado à Armada Portuguesa; e o «Árgus», recentemente resgatado pela firma Pascoal & Filhos de uma situação crítica, será restaurado para reaver a sua silhueta original.

(M.M.S.)

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