domingo, 3 de janeiro de 2010

O AMARELO DA CARRIS


O amarelo dos carros eléctricos de Lisboa é uma mancha alegre e móvel no quotidiano da cidade, da qual eles são, incontestavelmente, um dos emblemas. Foi esse símbolo oficioso da capital que inspirou a José Carlos Ary dos Santos um dos seus inesquecíveis poemas. Que nos fala do sucessor do Chora e do Americano, mas também da gente que ele leva «de Alfama à Mouraria», «da Baixa ao Bairro Alto» e da Graça até outros recantos da bela cidade de Ulisses.

«O Amarelo da Carris»

O amarelo da Carris
vai de Alfama à Mouraria,
quem diria.
Vai da Baixa ao Bairro Alto,
trepa a Graça em sobressalto,
sem saber geografia.

O amarelo da Carris
já teve um avô outrora,
que era o Chora.
Teve um pai americano,
foi inglês por muito ano,
só é português agora.

Entram magalas, costureiras;
descem senhoras petulantes.
Entre a verdade, os beliscos e as peneiras,
fica tudo como dantes.

'Quero um de quinze p'rá Pampulha'.
Já é mais caro este transporte.
E qualquer dia,
mudo a agulha, porque a vida
está pela hora da morte

O amarelo da Carris
tem miséria à socapa
que ele tapa.
Tinha bancos de palhinha,
hoje tem cabelos brancos,
e os bancos são de napa.
No amarelo da Carris
já não há 'pode seguir'
para se ouvir.
Hoje o pó que o faz andar
É o pó do Lavalar
com que ele se foi cobrir.

Quando um rapaz empurra um velho,
ou se machuca uma criança,
então a gente vê ao espelho o atropelo
e a ganância que nos cansa.
E quando a malta fica à espera,
é que percebe como é :
passa à pendura
um pendura que não paga
e não quer andar a pé.

Entram magalas, costureiras;
descem senhoras petulantes.
Entre a verdade, os beliscos e as peneiras,
fica tudo como dantes.
'Quero um de quinze p'rá Pampulha'.
Já é mais caro este transporte.
E qualquer dia,
mudo a agulha, porque a vida
está pela hora da morte.


Este poema de Ary foi musicado por José Luís Tinoco e encontrou na voz inigualável de Carlos do Carmo o seu mais famoso e caloroso divulgador

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