segunda-feira, 3 de outubro de 2016

FIGURAS INCOMUNS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL : O DECEPADO


Em 1476, o nosso rei D. Afonso V -deslumbrado com a possibilidade de vir a cingir as coroas das duas mais poderosas nações ibéricas- invadiu militarmente o território de Leão e Castela. Essa ambição não era de todo ilusória ou injustificada, visto o 'Africano' ter contraído casamento com sua sobrinha a infanta Joana de Trastâmara, que fora, sucessivamente, jurada princesa das Astúrias e mais tarde, aquando do falecimento de seu pai -Henrique IV- aclamada rainha de Castela. A principal oposição ao monarca português e às suas pretensões foi protagonizada por Isabel (a futura rainha Católica, meia irmã do defunto monarca) e por seu marido Fernando de Aragão; que, nesta contenda pelo poder, dispunham do apoio de grande parte da nobreza hispânica e, naturalmente, dos povos do lado de lá da fronteira. O tira-teimas final teve lugar nos campos de Toro, no dia 2 de Março de 1476, onde se feriu uma batalha com contornos militares indecisos. O exército espanhol (passe o termo) apresentou-se no terreno dividido em duas hostes distintas, uma delas comandada pela própria Isabel e a outra chefiada pelo seu marido aragonês. O mesmo sucedeu com as tropas portuguesas : D. Afonso V colocou-se à testa do seu troço principal -para dar combate às hostes isabelinas- e o infante D. João, seu filho e herdeiro, preparou-se para dar luta ao príncipe de Aragão. Os resultados dos embates foi desfavorável ao rei de Portugal, que foi derrotado pela sua rival castelhana; mas a hoste do futuro D. João II levou de vencida as forças de Fernando, que, assumindo a derrota, fugiu do campo de batalha, indo refugiar-se atrás das protectoras muralhas de Tordesilhas. Este empate militar em Toro, teve como consequência imediata a debandada dos partidários castelhanos de D. Afonso V e uma reacção avisada do herdeiro do trono de Portugal, que fez ver ao seu impetuoso pai que, politicamente, a partida estava perdida e que Portugal nada tinha a ganhar em prolongar UM conflito em território estrangeiro. Isabel e Fernando de Aragão ficaram, assim, com o caminho livre para a ascensão ao poder em Leão e Castela. Mas a paz -que poria fim à chamada Guerra de Sucessão de Castela- só seria restabelecida entre as duas potências ibéricas em 1479, com a assinatura do tratado de Alcáçovas-Toledo; que reconhecia Isabel e Fernando como reis do território em disputa e retirava à pretendente Joana de Trastâmara (alcunhada a 'Beltraneja') o direito de reivindicar a herança de Henrique IV. Obrigando-a, por outro lado, a permanecer em território português até à sua morte. Mas Portugal também tirou benefícios desse tratado, que obrigava os novos reis de Castela a reconhecer a hegemonia lusa no Atlântico (e, sobretudo, no cobiçado golfo da Guiné), com excepção do arquipélago canarino. Porque esta guerra imposta por D. João V também teve uma componente naval, na qual as esquadras reais portuguesas venceram quase sempre as frotas castelhanas.


Depois deste necessário intróito, vejamos agora o que se passou com o alferes-mor Duarte de Almeida (posteriormente alcunhado O Decepado), porta-estandarte do exército que D. Afonso V levou a Toro. No mais aceso da batalha, quando a hoste real se ressentia das acometidas de um forte e inesperado reforço inimigo, um grupo de castelhanos quis apoderar-se da bandeira de D. Afonso; para tanto, cercou o alferes-mor e intimou-o a entregar o estandarte que ele orgulhosamente brandia. Aproveitando-se da sua superioridade numérica e perante a recusa categórica do português de lhes entregar as insígnias reais (que, por sinal, combinavam os símbolos nacionais com os de Leão e Castela), os castelhanos deceparam-lhe uma mão e, depois, a segunda. Ainda assim, Duarte de Almeida, num assomo de desesperada e inaudita valentia, segurou o estandarte com os dentes. Só o largando, quando, segundo reza a tradição, foi ferido gravemente e deixado agonizante no campo de batalha. Mas a bandeira seria, pouco depois, recuperada pelo escudeiro Gonçalo Pires, cujo nome e cuja galhardia também são lembrados pelas crónicas do tempo.

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