domingo, 1 de outubro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (13)

Esta crónica já foi publicada por vários jornais e revistas de expansão regionalista. Há muitos anos, todavia... Aqui a deixo -com o título interrogativo «A LEI DAS SESMARIAS - AUTÊNTICA REFORMA AGRÁRIA OU SERVIDÃO CAMUFLADA ?»- porque a dita foi e continua a ser matéria polémica, que divide os historiadores. E agora siga-se com o texto :

D. Fernando I -que reinou em Portugal de 1367 a 1383- não goza, na nossa História, da reputação de ter sido um bom soberano. A sua governação ficou, com efeito, marcada por uma série de erros políticos, de entre os quais se devem salientar os seguintes : 1º - ter fomentado guerras desnecessárias contra os nossos poderosos vizinhos de Castela, cujos exércitos invadiram e saquearam, por três vezes, o território nacional; 2º - ter contraído um casamento impopular com Leonor Teles, causa de violentos motins e de sangrentas repressões; 3º - não ter deixado filho varão e legítimo que desse continuidade à dinastia fundada por el-rei D. Afonso Henriques, facto que redundou, depois do seu passamento, numa guerra civil, que alastrou por todo o país e que, uma vez mais, contribuiu para a devassa do nosso espaço territorial por tropas estrangeiras.
Apesar de tudo isso, alguns estudiosos do reinado d'o 'Formoso' atribuem a este soberano o mérito de ter decretado algumas acertadas medidas económicas, que, segundo eles, engrandeceram a nação e proporcionaram mais bem-estar ao povo português da última metade do século XIV. A mais meritória dessas medidas fomentadas pelo rei D. Fernando teria sido aquela que instituíu a famosa Lei das Sesmarias, que tornou obrigatório o amanho das terras deixadas ao abandono pelos respectivos proprietários ou pelos responsáveis pelo seu cultivo e que sujeitava os vadios notórios, os pedintes fisicamente válidos e outros desocupados ao trabalho dos campos.
Abra-se aqui um parêntese para lembrar a quem lê este texto, que eram designadas por sesmarias as terras distribuídas pelos nossos concelhos da Idade Média aos seus moradores. Moradores que, em contrapartida desse benefício, se comprometiam cultivar as courelas assim recebidas e a pagar (aos ditos concelhos) uma renda ajustada entre as partes interessadas.
A Lei das Sesmarias -promulgada em Santarém a 28 de Maio de 1375- foi, ao que parece, inspirada por um estatuto chamado 'dos trabalhadores', aprovado pelos parlamentares ingleses cerca de um quarte de século antes da aplicação no nosso país da célebre ordenação fernandina. Devido à míngua de mão-de-obra rural (consecutiva à terrível mortantade ocasionada pela peste negra), el-rei e os seus legisladores acharam por bem determinar aquilo que a seguir tentaremos resumir :
«Que todos os que têm herdades suas, próprias ou que as tiverem emprazadas ou aforadas (...) sejam obrigados a lavrá-las e semear», sob pena de serem expropriados; que «todos os que forem lavradores e os filhos e os netos dos lavradores e todos os outros moradores, assim nas cidades e vilas e fora delas, e tiverem de seu menos de 500 libras que todos e cada um destes sobreditos sejam obrigados a lavrar e usar do dito mester e ofício da lavoura» e, se não possuirem terras próprias, que sejam obrigados a colocar-se ao serviço dos proprietários que dos seus ofícios necessitem, mediante uma soldada conveniente, estabelecida pelas ordenações reais; que todos os homens válidos, que usem indevidamente «hábitos religiosos, que não são professos em algumas das ordens aprovadas (...) que vão lavrar e usar do mester da lavoura, fazendo-se lavradores»; que todos os mendigos e ociosos aptos ao trabalho «sejam catados pelas justiças de cada lugar» e obrigados a servir em «algum mester ou obra de serviço», nomeadamente nas tarefas da lavoura.
Estas disposições que, vistas à distância de mais de meio milénio, até nos podem parecer justas e, quiçá, adequadas à realidade portuguesa do tempo, foram, no entanto, logo contestadas por certas pessoas mais instruídas e de espírito mais aberto, ligadas, sobretudo, à actividade comercial. Chamava essa gente a atenção para o facto de -nessa ´rpoca- os europeus já se encontrarem empenhados numa transformação radical e irreversível da sociedade, que, entre outras coisas, preconizava o abandono progressivo da tradicional cultura de cereais em benefício de actividades mais rentáveis para os rurais, tal como o cultivo de olivais e vinhedos, cuja produção se exportava bem e permitia obter lucros mais consistentes. Pretendiam, por outro lado, os contestatários da Lei das Sesmarias, quão ilusório era tentar prender à terra os jovens que não manifestavam o menor interesse pelo mester de seus pais e que desejavam emancipar-se através do exercício de profissões de execução menos árdua e mais rendosa que, facilmente, poderiam encontrar nas vilas e cidades do Reino.
Certos estudiosos dos nossos dias avançam a ideia de que a Lei das Sesmarias -apontada por muitos como tendo sido uma exemplar reforma agrária- não teria passado, na realidade, de uma camuflada tentativa de instauração do regime de trabalhos forçados no nosso país. E isso, numa altura em que as classes populares (particularmente a classe campesina) aspiravam ascender a um estatuto social mais justo e desembaraçar-se dos entraves que faziam obstáculo à natural evolução do trabalhador enquanto indivíduo.
-Finalmente, em que ficamos ? Não se sabe muito bem... Nem até que ponto a chamada Lei das Sesmaria foi cumprida, nem se alguma vez contribuiu para a reestruturação da propriedade rural em Portugal, nem se concorreu para resolver as crises que atravessaram o reinado de D. Fernando, o último rei da dinastia afonsina.

(M.M.S.)

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