segunda-feira, 4 de setembro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (7)


Estas linhas foram publicadas -em Março de 2002- no «J. do B.», com o título «BISCOITO - ALIMENTO BÁSICO DOS NAVEGADORES DAS DESCOBERTAS»; que eu aqui desejo manter.

A existência, historicamente provada e comprovada, de fornos de cozedura do biscoito em Vale do Zebro (fornos que eram aquecidos, como também se sabe, com lenha recolhida na Mata da Machada), confere ao Barreiro um lugar importante na grande gesta dos Descobrimentos. É que, sem esse mantimento básico, não teriam sequer existido as armadas que levaram os nossos antepassados navegantes a lançar-se -nos séculos XV e XVI- na devassa de mares e oceanos até então desconhecidos e na aventura de «dar novos mundos ao Mundo».
O biscoito era o nutrimento que melhor se conservava em viagens que podiam durar meses inteiros de navegação, sem que os mareantes topassem com uma terra, onde pudessem renovar as reservas alimentares perecíveis (carne e peixe salgados, frutos, etc) que haviam embarcado no porto de partida. Era pois a ele, ao biscoito, que diariamente se recorria como parte substancial das refeições diárias; e era do biscoito que as tripulações se socorriam -enquanto dieta exclusiva- quando surgiam os tais problemas de renovação de 'stocks'. Foi o biscoito (tantas vezes degradado pelo tempo, pela bicharada e pelas condições precárias de acondicionamento) que assegurou a sobrevivência de muitas centenas de marinheiros lusíadas.
-Mas, afinal, o que era concretamente o biscoito, essa imprescindível reserva alimentar do tempo das Descobertas ?
O biscoito era, essencialmente, um simples pão de trigo de forma achatada e enfornado duas vezes. É esta última especificidade que está. aliás, na origem do seu nome. O vocábulo da nossa língua que o designa é, com efeito, uma corruptela da palavra latina 'biscoctus', que significa isso mesmo, cozido duas vezes.
Os fornos de fabrico do biscoito mais importantes do Reino, foram os da Porta da Cruz, em Lisboa, e os já citados fornos de Vale do Zebro, próximos de Coina, no actual concelho do Barreiro. A primeira notícia da existência de fornos reais desta natureza data do reinado de D. Afonso V. Apesar do grande peso da produção nacional, sabe-se, no entanto, que -no auge da grande aventura das Descobertas- os nossos fornos não produziam quantidades suficientes de biscoito para as nossas necessidades, sendo, pois, necessário recorrer à sua importação da vizinha Espanha. É que, naquele tempo, tal mantimento não abastecia unicamente as armadas. Era também enviado para as praças portuguesas do norte de África, onde as respectivas guarnições viviam em estado de cerco permanente; ou quase.
Graças aos cronistas da época áurea das Grandes Descobertas, podemos hoje saber, por exemplo, qual foi a ração de biscoito a que teve direito cada um dos tripulantes da armada que Vasco da Gama conduziu à Índia, no ano da graça de 1498. Viagem na qual participou, como se sabe, o ilustre barreirense Álvaro Velho, que foi o autor do respectivo 'roteiro'. Pois bem, aquando desse histórico périplo, cada homem recebeu, diariamente, 1 arrátel e meio de biscoito. Para além, refira-se a título de pura curiosidade, 1 arrátel de carne de vaca ou 1/2 arrátel de carne de porco, 2 quartilhos e meio de água doce e 1 quartilho e meio de vinho. Refira-se que essa antiga unidade de peso que era o arrátel, corresponde, nos nossos dias, a 459 gramas.
Depois disto dito, refira-se que a existência dos fornos reais de biscoito em Vale de Zebro, chegava, pois e por si só, como acima escrevi, para conferir um lugar de destaque na odisseia dos Descobrimentos. Mas o Barreiro tem, nesse capítulo, outros pergaminhos, já que, como ninguém ignora, existiram no lugar da Telha estaleiros navais do Estado, que construíram algumas das naus que participaram nessa aventura ímpar que foi, indubitavelmente, a nossa gesta marítima. Os tais arsenais da Telha (hoje na freguesia barreirense de Santo André) foram ali instalados, segundo os estudiosos, nos recuados tempos de el-rei D. Dinis. Mas essa é, naturalmente, outra história...
E agora, mesmo para terminar esta crónica sobre o biscoito, termino lembrando que se esse modesto e, todavia, indispensável pão (constituído por farinha de trigo, água e sal) atingiu o topo da sua celebridade na época das Descobertas Quinhentistas, já antes, muito antes, fora o alimento básico das tropas europeias em campanha. E isso, desde os remotos e gloriosos tempos do Império Romano.

(M. M. S.)




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