domingo, 26 de junho de 2016

COBRAS E LIVROS

Esta semana andei a esvaziar a minha cave, onde uma cobra (vinda da Natureza circundante e que lhe pertence) terá entrado sem ter sido convidada. Parece que, por aqui, neste recanto do Alentejo profundo, os répteis e outra bicharada não fazem cerimónia e invadem, quando lhes dá na real gana, as casas onde intrusos como eu se instalaram. Como se o mundo lhes pertencesse em exclusivo. Quero dizer que, apesar dos seus estimados 130 centímetros de comprimento e razoável grossura, acabei por não avistar o bicho; que presumo ter feito, apenas, à dita cave, uma visita exploratória em busca de ratos que por ali não havia. E que, feito isso, de lá se raspou mais discretamente do que para lá entrara. Acabei, no entanto, por achar na cave um determinado número de coisas interessantes, nomeadamente um livrinho que vou reler nestes próximos dias. Trata-se de «Bancarrota», uma das controversas obras de Tomás da Fonseca (pai do também escritor Branquinho da Fonseca), uma figura excepcional da nossa cultura e da nossa vida pública, que viveu entre 1877 e 1968. Natural de Mortágua (no distrito de Viseu), Tomás da Fonseca estudou teologia no seminário de Coimbra, mas cedo se incompatibilizou com a Igreja; ao mesmo tempo que começou a desposar as ideias e causas que, em Portugal, lutavam contra o obscurantismo clerical. Passou, assim, a apoiar o partido republicano e a tomar parte activa nas rijas lutas que acabaram por assegurar a derrocada da monarquia. Durante os primeiros tempos do novo regime, Fonseca chegou a ser chefe de gabinete do governo de Teófilo Braga e, em 1916, foi eleito senador pelo distrito de Viseu. Também foi um enérgico opositor ao regime ditatorial de Sidónio Pais. A par dessa sua actividade política, Tomás da Fonseca fundou revistas e jornais, com os quais colaborou intensamente, e escreveu livros que, como o já citado, levantaram enorme polémica. Durante o Estado Novo as coisas agravaram-se para Tomás da Fonseca. Entre muitas das suas públicas intervenções contra o regime salazarista, ressalve-se a denúncia da abertura e funcionamento do desumano campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Essa sua corajosa atitude, pagou-a o escritor com a apreensão de livros e com prisão levada a cabo por iniciativa da polícia política do regime : a tenebrosa PIDE. O livro «Bancarrota», que agora reencontrei, esteve proibido durante os anos negros do salazarismo. A edição que possuo foi editada no Brasil em 1962 e é, segundo as palavras do autor, «um exame à escrita das agências divinas». Vale a pena ler ! Isto dito, acho estranho e lamentável que uma figura intelectual da envergadura de Tomás da Fonseca tenha sido completamente esquecida no nosso país. E também acho que já é tempo da nação portuguesa prestar a homenagem que deve a este livre pensador...

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