terça-feira, 4 de julho de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (2)


«GAZELA PRIMEIRO» : DA AZINHEIRA VELHA PARA FILADÉLFIA. Foi com este título, que as linhas que aqui vos deixo foram imprimidas, pela primeira vez (em 21 de Julho de 2006), no extinto e saudoso «Jornal do Barreiro»; ao qual nós oferecemos desinteressada colaboração durante vários anos.

Por estarmos convencidos de que este assunto nunca foi tratado nas páginas do «J. B.», vamos lembrar aos leitores deste nosso semanário a existência e o destino de um velho bacalhoeiro da seca da Telha; que finda a sua missão nos mares da Terra Nova e da Gronelândia (onde participou em 67 campanhas de pesca), teve a sorte de escapar à sanha dos demolidores de velhas carcaças. Para se transferir para os Estados Unidos, para o porto da aristocrática cidade de Filadélfia, onde a sua majestática presença gera o entusiasmo de muitos milhares de visitantes e provoca a admiração dos amantes de velhos veleiros.
A construção (em madeira) do «Gazela Primeiro» está envolvida nalgum mistério, facto que tem gerado polémica entre os estudiosos do assunto. Com efeito, há quem defenda a ideia de que este lugre-patacho(1) tenha sido construído em Cacilhas, nos anos 80 do século XIX, pela casa J. A. de Sampaio. Mas essa tese parece carecer de credibilidade, já que este antigo bacalhoeiro consta da lista de navios da firma Bensaúde & Cia. desde 1876. Outras pessoas e outras fontes atribuem a paternidade do «Gazela Primeiro» a J. M. Mendes com estaleiro em Setúbal. Mas há também quem pretenda que o referido construtor sadino só tenha procedido a uma substancial reforma do navio, que teria sido construído de raiz... nos Açores ou na Madeira, arquipélagos onde o veleiro em questão se teria, inicialmente, consagrado à caça dos cetáceos que por ali abundavam.
É óbvio que não nos compete a nós intrometermo-nos nesta controvérsia de especialistas. Por evidente falta de competência, mas também porque nem é esse o tema do presente artigo. Cabe-nos, isso sim, contar as circunstâncias que levaram o «Gazela Primeiro», esse testemunho da História do Barreiro e da nossa recente epopeia marítima a deixar definitivamente as águas do rio Coina e a fixar-se na costa leste dos Estados Unidos.
Ora aqui vai : depois do seu regresso a Portugal, no término da sua derradeira campanha de pesca -a de 1969- o «Gazela Primeiro», que então se encontrava sob o mando do capitão Aníbal Parracho, descarregou na seca da Azinheira Velha o bacalhau capturado nos mares do Atlântico norte e foi, prontamente, reformado pelos seus proprietários. Com efeito, o navio, tecnicamente obsoleto, era também demasiadamente pequeno para gerar lucros ao seu armador. Iam, pois, longe os tempos em que o famoso lugre-patacho fora alcunhado o 'gazelão', pelo facto de ser o maior navio de toda a frota portuguesa a operar nos bancos bacalhoeiros do Canadá.
Abordada por responsáveis do Museu Marítimo de Filadélfia, a gerência da firma proprietária do «Gazela Primeiro» resolveu vender o navio a essa instituição, que se propôs restaurá-lo e assegurar a sua sobrevivência, enquanto testemunho de uma época ímpar da nossa actividade piscatória. Não existindo nenhuma entidade portuguesa empenhada na salvaguarda do navio (embora se tivessem, então, levantado muitas vozes para impedir a perda de tal espólio), a casa Bensaúde entregou (em inícios do ano de 1971) o bacalhoeiro aos norte-americanos a troco de 1 500 contos de réis. Disse-se que o seu novo proprietário despendeu mais 1 000 contos só nos primeiros trabalhos de restauro do navio, que foram executados sob a orientação do capitão Francisco Marques.
Em 22 de Maio desse mesmo ano de 1971, o «Gazela Primeiro» mudava de registo e de nacionalidade e hasteava, pela primeira vez, a bandeira dos Estados Unidos da América. A travessia do Atlântico foi conduzida por uma prestigiosa equipagem internacional comandada por Robert Hudgins. Dela fez parte um único cidadão português : o maquinista naval Manuel da Maia Rocha, que fizera, outrora, parte da tripulação do bacalhoeiro e que, como ele, se havia radicado nos 'states'.
Tendo percorrido a histórica rota de Colombo, com escalas nas ilhas Canárias e em Porto Rico, o velho lugre barreirense chegou ao seu destino 44 dias depois de ter zarpado do estuário do Tejo. Em Filadélfia, o director do museu marítimo local (sr. Robert B. Inverarity) disse, no discurso de recepção ao Gazela Primeiro» : «...o preço que custou o navio importa pouco. O principal é que através daqueles velhos mastros e convés, os americanos adivinhem a persistência e a vontade de um povo pioneiro».
O nosso antigo lugre bacalhoeiro -que se chama agora «Gazela of Philadelphia»- tornou-se num autêntico emblema da cidade-berço(2) dos Estados Unidos. Tem participado em inúmeros e prestigiosos eventos de carácter naval e é posto, quando necessário, à disposição da 'US Navy' para a formação dos seus cadetes. Na sequência da sua participação na chamada Op.Sail'76, organizada aquando das comemorações do 200º centenário da independência dos EUA, o ex-«Gazela Primeiro» sofreu um grave acidente material, ao ser sucessivamente abalroado pelo «Mircea» (navio-escola romeno) e pelo «Christian Radich» (veleiro de bandeira norueguesa). Para custear as onerosas reparações  a efectuar no navio, foi criada, em 1980, a fundação Philadelphia Ship Conservation Guild, que é, actualmente, a sua entidade armadora.
O antigo «Gazela Primeiro» tornou-se, igualmente, um símbolo (como se fora um quase pedaço da pátria distante) para os portugueses radicados nos Estados Unidos, principalmente para aqueles (muito numerosos) que fixaram residência na Nova Inglaterra.
Quanto a nós, resta-nos chuchar no dedo (como diz a outra) e ir vivendo da recordação daquele nosso património que (como tantos filhos deste torrão à beira mar plantado) se viu obrigado a expatriar-se para poder continuar a existir. Que destino o nosso e o das nossas coisas...

(1) O lugre-patacho era um navio de 3 mastros. O mastro de vante estava equipado com velas redondas e os dois outros paus ostentavam panos áuricos (de forma trapezoidal) e latino (triangular).
(2) Filadélfia foi fundada em 1682 por William Penn. Situada no estado da Pensilvânia, esta cidade foi sede do Congresso que, no ano de 1776, proclamou a independência unilateral dos Estados Unidos da América. Daí lhe vem o epíteto de 'cidade-berço'. Filadélfia também foi, entre 1790 e 1800, sede do governo federal.

(M. M. S.)

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