segunda-feira, 14 de setembro de 2015
MORREU O ESGANIÇADO
Chamavam-lhe o Esganiçado, porque berrava a cantar o fado; embora (adivinhava-se) ele sentisse como ninguém aquela chama que caracteriza os autênticos cultores da agora valorizada 'canção nacional'. Serralheiro de seu ofício, o Esganiçado ia -depois de ter cumprido as suas 8 horas de labor- jantar a casa com a 'patroa' e com os seus três rebentos. Depois, em dias certos da semana, apinocava-se com um velho fato cinzento (talvez o do seu casamento), enrolava um cachené vermelho à volta do seu magríssimo pescoço e partia para as tascas do costume, onde se cantava e se cultuava o fado vadio. A sua pose insólita, com o corpo exageradamente curvado para a frente, e a sua voz ridiculamente estrídula, começaram por ser gozadas, por serem alvos de risotas mais ou menos contidas; mas, passados anos, as pessoas começaram a habituar-se às suas melopeias e a respeitar o homem que, sem verdadeiramente saber cantar, insistia, persistia e dava o seu melhor para deixar transparecer sentimentos sinceros dos fados que interpretava. Por fados com versos seus, simples e sem o vigor dos poemas de famosos vates. Morreu anteontem... Já envelhecido e só lembrado por um pequeno grupo de amigos de juventude, que seguiu, silenciosamente, o seu funeral até à profunda e sombria cova onde foi sepultado. Singelamente, sem flores, nem cerimónia religiosa. Numa modesta lápide de mármore branco, esses amigos mandaram gravar estas despretensiosas, mas sentidas palavras : «Aqui jaz um operário honrado e um fadista singular». Estou certo, que, já no céu dos cantadores, embalado pelo inconfundível som de guitarras e de violas, o Esganiçado sorriu...
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