sábado, 23 de setembro de 2017

AS MINHAS CRÓNICAS (10)

«O AÇÚCAR DE ÁCER, UMA ESPECIALIDADE DO QUEBEQUE», é o título que eu dei a este texto, que foi publicado -há uma boa dúzia de anos- por dois ou três órgãos da nossa imprensa regional. Aqui o exponho de novo, desta vez à curiosidade dos visitantes deste blogue, por falar de um produto pouco conhecido fora da América setentrional e do qual eu próprio só tomei conhecimento da existência nos anos 90 (do passado século, obviamente), depois de ter tido a sorte de ter feito uma viagem inesquecível pelo Canadá (províncias do Quebeque, e do Ontário e território onde se situa Otawa, a capital do país) e pelo norte do estado de Nova Iorque.

O ácer (ou bordo) é, sem dúvida, uma das árvores mais emblemáticas de todas aquelas que crescem nas vastas florestas da América do norte. Foi, pois, muito judiciosamente que os canadianos escolheram -em 1965- uma das suas e vistosas folhas para decorar a nova bandeira nacional.
A árvore que hoje aqui desejamos evocar é conhecida dos botânicos pela designação científica de 'Acer saccharum' e distingue-se da centena e meia de outras espécies de bordos existentes no hemisfério norte pela sua faculdade em segregar uma seiva açucarada. Essa substância é recolhida,no Canadá oriental, no início da Primavera e alimenta uma indústria tradicional do Quebeque, a província francófona desse vasto país.
O açúcar de ácer terá sido descoberto em tempos imemoriais pelos índios Iroqueses, nativos da região dos Grandes Lagos; que é, hoje, partilhada pelo Canadá e pelos Estados Unidos da América. Segundo reza uma lenda local, um dos chefes dessa belicosa nação pele-vermelha(*) teria cravado o seu 'tomahawk' no tronco de um bordo e verificado , dias passados, que da incisão deixada na árvore pelo machadinho de guerra, escorria um líquido espesso e melífero.
Teriam sido, igualmente, os Iroqueses os inventores dos primeiros artefactos destinados a recolher a preciosa seiva do ácer e, também eles, quem descobriu o processo de evaporação que conduz à produção do melaço ou xarope-base.
Os colonos franceses do Canadá só terão tomado conhecimento das potencialidades e virtudes do 'acerabullus' (um outro nome dado ao 'Acer saccharum') no decorrer do século XVIII. A produção industrial do açúcar de bordo tem, pois, menos de 300 anos de existência. Essa actividade, que hoje congrega -só na província do Quebeque- cerca de 9 000 fabricantes, assegura à chamada 'Belle Province' perto de 90% da produção canadiana de melaço agrícola e mais de 70% do total mundial. Outros territórios da América setentrional produzem açúcar de ácer. Citem-se, a título de exemplo, as terras do baixo São Lourenço (também no Canadá), Mapple County (na região estadunidense dos Appalaches) e o pequeno estado norte-americano do Vermont. Todas essas regiões enfrentam, actualmente(**), tal como o Quebeque, grandes problemas para preservar os seus preciosos bordos, que periclitam devido à acção devastadora das chuvas ácidas que se abatem sobre as florestas da América do norte e que concorrem, infelizmente, para a perda -a médio prazo- de um inestimável património vegetal.
A captação da seiva do ácer é feita praticamente nos mesmos moldes com que se procede, em Portugal, à recolha da resina dos pinheiros. Quer dizer, praticando uma incisão na árvore e recolhendo o produto desejado num pequeno vaso fixado no respectivo tronco. A calda expelida pelo 'Acer saccharum' contém, aproximadamente, 97,5% de água. 0,1% de sais minerais e 2,4% de sacarose. Daí ser indispensável fervê-la em caldeiras apropriadas, para fazer evaporar as substâncias indesejáveis e concentrar o açúcar. No decorrer dessa operação, que dura várias horas, vão-se obtendo (consoante a temperatura) vários produtos, tais como o açúcar mascavado, o chamado açúcar duro, o caramelo ou a manteiga de ácer. São, geralmente, necessários 30 a 40 litros de seiva para se produzir 1 litro de xarope-base. O dito é definido pelos nomes de extra-claro, claro, médium, âmbar e escuro, segundo a tonalidade de cores que apresenta. A classificação dos produtos acima referidos é estabelecida e severamente controlada pelas autoridades provinciais se os mesmos forem consumidos no Canadá, ou por instâncias nomeadas pelo governo central se os produtos em causa se destinarem à exportação.
O folclore ligado à extracção e à produção do açúcar de áxer ('sucre d'érable', no dizer dos canadianos de língua francesa) está enraizado nos hábitos dos quebequenses, que costumam reunir-se, na altura própria, em típicos barracões ('cabanes'), próximos das áreas de exploração dos bordos, para festejar, por exemplo, a primeira extracção do ano. Essas reuniões festivas entre amigos e vizinhos são, geralmente, animadas por conjuntos musicais, que fazem dançar os convivas ao som de ancestrais melodias de nítida origem bretã ou normanda.
Como não se podem conceber -na nossa civilização ocidental- festas sem petiscos, as mesas são, então, gurnecidas com especialidades locais, de onde sobressaem as feijoadas confeccionadas à moda da terra, as favas com toucinho, as costeletas de porco, os coiratos fritos, o presunto e, como não podia deixar de acontecer, algumas saborosa sobremesas elaboradas com açúcar de ácer. A especialidade mais apreciada é, sem dúvida um caramelo vertido directamente (e ainda em estado líquido, bem entendido) sobre a neve e saboreado com sofreguidão, tanto pelos adultos como por toda a pequenada presente.
Tivemos a ocasião e participar numa dessas animadas festas, que teve lugar na ilha de Orleães, situada no curso do rio São Lourenço, a escassos quilómetros de distância da histórica cidade de Quebeque, fundada por Samuel Champlain em 1608. E, acreditem se quiserem que, desse popular acontecimento e do contacto com as hospitaleiras gentes dessa região, guardámos uma das melhores recordações de férias. trazidas desse grande e maravilhoso país de neve e de florestas que é o Canadá; terra onde se fixaram, como é do conhecimento geral, inúmeros compatriotas nossos.

(*) A forma mais correcta para designar os nativos das Américas é ameríndio; aqui estamos a utilizar formas (índio, pele-vermelha) consagradas por muitos anos de maus hábitos, mas que entraram na linguagem corrente.
(**) Este texto foi escrito (como acima ficou claro) há muitos anos, e nós confessamos ignorar qual é o actual estado de saúde das florestas canadianas.

(M. M. S.)

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