sábado, 22 de julho de 2017
AS MINHAS CRÓNICAS (3)
Publicada no «J. do B.» há mais de 18 anos, esta crónica refere-se a um dos navios germânicos arrestados pela Armada Portuguesa no porto de Lisboa em Fevereiro de 1916. Acto hostil, que teve como consequência imediata a declaração de guerra da poderosa Alemanha Imperial a Portugal, apresentada pela via diplomática, passados poucos dias. Eis esse texto integral, intitulado «Algumas linhas sobre o navio 'Barreiro'» :
Armando da Silva Pais, que é uma referência incontestável em tudo o que à História do Barreiro diz respeito, dá-mos -num dos livros que consagrou ao passado da nossa cidade- informação detalhada sobre a existência e sobre o trágico fim de uma unidade da marinha mercante nacional, que navegou com o nome da então vila do Barreiro pintado no seu casco de aço.
Se hoje desejamos abordar o assunto nas páginas deste nosso semanal é, primeiramente, pelo facto dos livros do supracitado autor se encontrarem esgotadíssimos e de, por via de consequência, a informação sobre o navio em causa poder escapar à curiosidade de muitos jovens da nossa terra que se interessam pelo seu passado histórico e por acontecimentos marginais que, como este, também lhe dizem respeito. Depois, porque encontrámos recentemente na Internet, um desenho (da autoria do escritor e artista Luís Filipe Silva, que daqui saudamos com a devida vénia) que reproduz fielmente os contornos longitudinais do navio «Barreiro».
Mas, antes de nos lançarmos no relato dos factos, queremos abrir aqui um breve parêntese para rectificar uma afirmação de Armado Silva Pais; que, na página 202 do último tomo da sua obra sobre o Barreiro, diz o seguinte : «O primeiro dos navios de carga que presumimos ter havido com o nome de 'Barreiro' foi o antigo barco alemão 'Lubeck', apresado no Tejo com outros barcos tomados à Alemanha, após a declaração de guerra a Portugal em Março de 1916». Ora, na realidade (e como referimos no cabeçalho destas linhas), o apresamento dos navios germânicos no Tejo (e noutros portos nacionais) ocorreu em data de 23 de Fevereiro de 1916 e precedeu, portanto, a declaração de guerra que a Alemanha de Guilherme II entregou -oficialmente e pela via diplomática- ao governo do nosso país em data de 9 de Março de 1916. Podemos pois afirmar -por ser um facto histórico indesmentível- que foi esse acto inamistoso da apreensão dos navios, que esteve na origem da dita declaração de guerra.
Isto dito, passamos a descrever -de maneira muito incompleta, é certo- as características do cargueiro «Barreiro» ex-«Lubeck». Construído em 1911 pela firma Schiffwerft Henry Koch AG, de Lubeck, para o armador O.P.D.R. de Oldenburgo, o navio recebeu o nome da cidade onde fora fabricado. Era um navio com 84,60 metros de comprimento por 12 metros de boca, que podia deslocar 3 000 toneladas em plena carga. Quando a guerra eclodiu, o cargueiro refugiou-se, como muitos outros navios da sua nacionalidade, no porto neutro de Lisboa, onde chegou em data indeterminada do mês de Agosto de 1914.
No dia 23 de Fevereiro de 1916 -como já acima foi referido- todos os navios alemães refugiados nos nossos portos, tanto metropolitanos, como coloniais ou insulares, foram investidos por forças da nossa Armada e apresados. Isso, ao que parece, por instigação do governo britânico. Foram ao todo 74 navios mercantes de vários tipos e tamanhos.
Além daquele a que, posteriormente, viria a dar-se o nome de «Barreiro», outros navios conhecidos figuravam nesse lote de umidades da marinha mercante tudesca confiscados. Referiremos, a título de exemplo, dois deles : o «Lahneck», que seria baptizado em Portugal com o nome de «Gil Eanes» e que, anos mais tarde, seria convertido no navio-hospital da nossa frota bacalhoeira; e o «Rickmer Rickmers», um belíssimo veleiro de 3 mastros ao qual os portugueses dariam o nome de «Sagres» e utilizariam como navio-escola da Armada. Este último acabaria por ser devolvido ao seu país de origem em 1983, estando agora a funcionar como navio-museu no porto de Hamburgo.
Depois do seu apresamento no Tejo, o «Lubeck» (depois designado «Barreiro») foi integrado na frota dos Transportes Marítimos do Estado (TMT), que o colocaram nas rotas do comércio internacional. Em 27 de Abril de 1917, o «Barreiro» saiu da Rocha do Conde de Óbidos (Lisboa) rumo a Ruão, porto marítimo-fluvial da Normandia, no norte de França. Como refere Armando da Silva Pais no seu livro, o navio fora consignado à firma Viúva Macieira & Companhia e transportava 4 000 pipas de vinho branco e algumas centenas de sacos de cacau. O «Barreiro» dispunha, então, de uma equipagem de 35 homens, capitaneados pelo oficial cabo-verdiano José Gomes de Pina, natural da ilha do Fogo.
Presumimos que os tripulantes do «Barreiro» seguiram o seu caminho com o coração nas mãos, visto a rota traçada ao longo das costas hispano-francesas ser muito batidas pelos submersíveis germânicos. Submarinos que, naturalmente, constituiam um perigo permanente e letal para a navegação das potências Aliadas. E a verdade é que esses esforçados homens da marinha mercante tinham bastas razões para apreenderem um indesejável encontro com o inimigo invisível.
Esse mau encontro acabou mesmo por acontecer, no dia 1º de Maio de 1917, quando o navio de bandeira portuguesa cruzava o golfo de Biscaia; ou da Gasconha, como preferem chamar-lhe os Franceses. Intimado a parar a máquina pelos submarinistas alemães, o capitão do «Barreiro» viu-se também obrigado a receber no seu navio uma equipa de inspecção armada, que examinou a carga transportada, o livro de bordo e demais documentação e registos. Parece que o facto de terem tomado conhecimento de que o cargueiro interceptado era um dos dos cargueiros recentemente confiscados pelos Portugueses os excitou particularmente. E que, após regresso ao submarino (que não conseguimos identificar) da brigada de inspecção, os artilheiros alemães (que, obedecendo a ordens superiores, esperaram uns minutos, para que os tripulantes do «Barreiro» pudessem evacuar o cargueiro) começaram a alvejar o navio com tiros de peça, afundando-o em espaço curto de tempo.
Um dos membros da tripulação do «Barreiro» (um criado de bordo) morreu em consequência da intensa metralha disparada pelos germânicos. Todos os outros lograram fazer-se ao mar nas baleeiras de bordo e atingir, à força de remos, a costa espanhola. Alguns deles bastante feridos. Depois de tratados no país vizinho pelas autoridades sanitárias locais, todos os sobreviventes puderam regressar a Portugal.
(M.M.S.)
Navio mercante da Grande Guerra afundando-se devido à acção de um submarino alemão. Não é o «Barreiro, mas sim um cargueiro similar e anónimo perdido em idênticas circunstâncias.
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