Vou dar início, hoje e neste blogue, à publicação de uma série de textos que já foram divulgados -nos primeiros anos desta década- num jornal regional do distrito de Setúbal. Publicação que, infelizmente, deixou de existir, depois de muitas décadas de vida ao serviço da comunidade barreirense. O texto que, hoje e agora, aqui apresento é dedicado ao NTM «Creoula»; que fez parte, outrora, da frota bacalhoeira do armador Bensaúde; que operava a partir do rio Coina, mais exactamente da seca da Azinheira Velha, Telha, Barreiro.
Mas passemos ao prometido texto, que eu, na altura, intitulei
«EVOCANDO O 'CREOULA', UM LUGRE BACALHOEIRO BARREIRENSE»
O «Creoula» é hoje -como toda a gente sabe- un NTM (Navio de Treino no Mar). Em 1979, depois de um período de semi-abandono, este lugre bacalhoeiro barreirense foi comprado pela Secretaria de Estado das Pescas ao seu antigo proprietário, a Parceria Geral de Pescarias.
Em boa hora fez o Estado Português tal aquisição, já que, sem esse gesto por parte da acima referida entidade governamental, o «Creoula» teria tido o fim de tantas outras unidades da nossa marinha mercante (e não só), que acabaram ingloriamente a sua carreira devorados pela ferrugem. E isso perante a total indiferença dos homens e das instituições que deveriam ter a preocupação de preservar os testemunhos prestigiosos do nosso passado marítimo.
Depois de ter sido oficialmente classificado como património do Estado, o «Creoula» entrou no estaleiro para ali se submeter a indispensáveis trabalhos de remodelação (sobretudo a nível do bojo), de modo a adaptá-lo às exigências da sua nossa missão. Assim, o porão do navio, onde, no passado, se acondicionava o bacalhau -devidamente salgado, para poder aguentar a viagem de retorno do lugre até à seca da Telha- foi redimensionado e melhor aproveitado para ali se instalarem as acomodações dos instruendos e de algum pessoal do quadro permanente de tripulantes. É também nessa zona do navio que estão localizados refeitórios, lavabos e uma pequena estação de tratamento de águas residuais.
Após ter sido equipado com todos os requisitos exigidos pela sua nova qualidade de escola flutuante e itinerante, o NTM «Creoula» tornou-se, como é óbvio, operacional. Desde então, têm tomado lugar a bordo do elegante navio centenas de jovens nacionais e estrangeiros. Muitos deles são formandos da Escola Portuguesa de Pesca, enquanto outros pertencem a diferentes estabelecimentos educativos e associações, que vêm familiarizar-se, no «Creoula» com as ancestrais práticas da marinha à vela ou, simplesmente, fruir do infinito prazer de cruzar mares e oceanos a bordo de tão precioso navio.
UM POUCO DE HISTÓRIA - O «Creoula» foi construido nos estaleiros da CUF, em Lisboa, e lançado à água no dia 10 de Maio de 1937. Ainda nesse ano, a Parceria Geral de Pescarias (gerida pela conhecida e empreendedora família Bensaúde) decidiu fazê-lo participar na sua primeira campanha bacalhoeira, sob o comando do capitão Aníbal da Graça Ramalheira.
A base do «Creoula situava-se no curso do rio Coina, junto à seca de bacalhau explorada pela supracitada firma, no sítio da Azinheira Velha, na Telha, Barreiro. O autor destas modestas linhas recorda-se de ver (quando era menino e moço) este navio ali ancorado, na saudosa companhia do «Argus» (um dos seus 'sister-ships'), e dos lugres de 3 mastros «Gazela I» e «Hortense».
A zona de pesca do «Creoula» era, geralmente, determinada pelo saber e pela intuição do seu capitão e podia estender-se, 'grosso modo', dos bancos da Terra Nova até às águas gélidas do mar de Baffin, que banham a costa ocidental da Gronelândia. O «Creoula» totalizou 37 dessas duríssimas e morosas campanhas de pesca longínqua, que podiam prolongar-se (incluindo as viagens de ida e volta) de Abril até Outubro.
Uma boa campanha de pesca podia traduzir-se, para o «Creoula», num carregamento de cerca de 13 000 quintais de peixe verde (salgado, para os profanos), o que equivalia a 800 toneladas de gadédeo seco e pronto a comercializar. Para além disso, o navio dispunha de capacidade para armazenar 60 000 quilos de óleo de fígado de bacalhau, num tanque especialmente concebido para o efeito e situado à proa. Refira-se que a pesca efectuada pelos homens deste navio (e congéneres) -tarefa árdua e extremamente perigosa- fazia-se à linha, a bordo de frágeis dóris; que, que, após a faina, eram içados a bordo do lugre e empilhados no respectivo convés.
O «Creoula» é um navio com casco de aço, dotado de 4 mastros (que se elevam a 36 metros de altura) aparelhados com 1 244 m2 de superfície vélica. O seu comprimento fora a fora é de 67,40 metros e a sua boca (largura máxima do casco) de 10 metros. O NTM «Creoula» desloca, na sua actual configuração, 1 300 toneladas e tem 4,70 metros de calado. O navio está equipado com um motor auxiliar, que lhe imprime (sem recurso ao velame) uma velocidade máxima de 8 nós. A tripulação do «Creoula» é agora constituída por 38 membros (6 oficiais, 6 sargentos e 26 praças), que regulam e organizam a vida a bordo dos 51 instruendos que o navio pode receber simultaneamente.
Refira-se, para finalizar estas linhas e ainda a propósito da pesca do bacalhau (o tal 'fiel amigo da lusa gente), que os nossos marítimos começaram a frequentar os bancos da Terra Nova, Gronelândia e mares adjacentes desde tempos imemoriais. Certos historiadores pretendem mesmo que a presença de pescadores portugueses no litoral atlântico da América setentrional remonta a uma época anterior a 1492, ano oficial da descoberta do Novo Mundo pelo enigmático Cristóvão Colombo. Assim, o cronista Gaspar Frutuoso (um açoriano do século XVI) referiu, num dos seus escritos, que João Vaz Corte Real e Álvaro Martins Homem desembarcaram na ilha Terceira, em 1472, com um carregamento de bacalhau «que tinham ido descobrir por ordem de el-rei».
(M. M. S.)
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