quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O DESAIRE DE BADAJOZ : FERIDO NUMA PERNA, D. AFONSO HENRIQUES É APRISIONADO POR FERNANDO II, REI DE LEÃO

(Páginas esquecidas da nossa História - 1)

Sabe-se hoje, com rigor, que o célebre bandoleiro medieval Geraldo Geraldes, alcunhado o «Sem Pavor», foi um agente provocador do nosso primeiro rei. Com efeito, o ardiloso conquistador da cidade de Évora mantinha realações secretas com D. Afonso Henriques, que o encorajava (pagando-lhe) a mover acções militares irregulares em certas regiões da Península ocupadas pelos muçulmanos e sobre as quais os reis vizinhos de Leão e Castela dispunham –graças a tratados firmados- do direito exclusivo de conquista.
Nessas circunstâncias, não é de admirar que, o famoso cavaleiro-vilão tenha beneficiado em Portugal da maior das impunidades. Pudera ! Geraldes guardava para si e para os seus homens o produto das pilhagens, mas oferecia ao rei de Portugal as praças e castelos dos quais se ia apoderando. E D. Afonso Henriques fingia, publicamente, admoestá-lo e perdoar-lhe as tropelias, sem, contudo, devolver aos lesados as terras e bens assim conquistados.
Protegido dessa curiosa maneira, o «Sem Pavor» chegou a internar-se em território sarraceno, muito para além da actual raia alentejana e a levar a guerra a Trujillo ou a Badajoz, praças particularmente apetecidas por Afonso I. Depois de ter tomado a primeira dessas cidades em 1165, Geraldo Geraldes montou um apertado cerco a Badajoz, acabando por investi-la com sucesso no ano de 1169. O ladino e arrojado Geraldo foi apoiado nessa empresa contra os mouros de Badajoz pelas tropas reais e pelo próprio soberano português, que, encontrando-se, ao tempo, em guerra aberta com o seu genro Fernando II de Leão, nem sequer tentou disfarçar, dessa vez, o irrespeito que lhe merecia a letra dos tratados.
Pouco depois da sua entrada em Badajoz e da brilhante vitória alcançada contra a respectiva guarnição muçulmana, os portugueses foram surpreendidos pela brusca e inoportuna chegada das hostes leonesas diante das muralhas dessa cidade ribeirinha do Guadiana. Hostes que, a marchas forçadas, para ali haviam convergido logo que Fernando II tomou conhecimento das acções bélicas do seu irrequieto sogro em terras cuja posse, ele muito legitimamente reivindicava.
Tendo, assim, passado da incómoda situação de triunfadores à de sitiados e perante a desproporção de forças, que lhes era francamente desfavorável, D. Afonso Henriques, Geraldo Geraldes e os seus cavaleiros resolveram renunciar (temporariamente, pensavam eles) à posse da praça e, ao mesmo tempo, sair airosamente da aventura. Nesse transe, os portugueses evacuaram a cidadela de Badajoz, onde se encontravam cercados, e irromperam num tropel desenfreado pelo meio dos leoneses, procurando a salvação na fuga. Foi, pois durante essa retirada precipitada que o nosso primeiro rei embateu violentamente com uma perna no ferrolho de uma das portas da fortificação e, já em campo aberto, foi estatelar-se numa seara de centeio. Ali, com uma perna partida, o rei de Portugal foi socorrido, não pelos seus homens, que na confusão da fuga nem sequer se aperceberam do infausto acontecimento, mas pelos soldados inimigos, que o aprisionaram.
Parece que ao ver-se capturado, D. Afonso Henriques, o temível ‘Ibn Errik’ –pavor de toda a moirama- chorou como uma criança ! De raiva e de impotência, sem dúvida. E que suplicou insistentemente a seu genro a graça de o libertar e de o mandar de volta às suas terras, mediante a entrega imediata de todas as praças e castelos que ele, rei de Portugal, havia conquistado à revelia da assinatura dos tratados estabelecidos solenemente entre ambos.
Rezam as crónicas que Fernando II se deixou impressionar pelas súplicas do seu encanecido sogro (que já contava, nessa altura, a respeitável idade de 68 anos) e que, magnânimo, se contentou com a devolução de vinte e cinco cidades, vilas e fortalezas anteriormente tomadas pelos portugueses aos agarenos e a cuja posse o rei de Leão se julgava legitimamente com direito, como já se fez menção. D. Afonso (que esteve detido cerca de dois meses) teve de entregar, igualmente, ao seu rival e parente a cidade galega de Tui e territórios adjacentes e remeter-lhe, do mesmo modo, vinte preciosos cavalos de batalha e quinze azémolas carregadas com 3 000 kg de ouro ! Apesar das aparências, o resgate pago pelo fundador da nacionalidade ao monarca leonês foi bastante leve, se comparado com aquilo que, ao tempo, se exigia em semelhantes circunstâncias.
Abro aqui um parêntese para dizer aos leitores impressionados pela grande quantidade de ouro vertido por D. Afonso I ao seu genro e captor, que o rei de Portugal era um homem rico; e que, tal como os outros monarcas da sua
época, ele alimentava o tesouro real com o produto dos saques das cidades e vilas que conquistava, com o ouro (moeda universal do tempo) proveniente dos resgates dos cativos abastados, com os impostos e taxas lançados sobre os concelhos e com o dinheiro ganho em rendas, portagens, tributos, venda de privilégios, etc. Além disso, o rei de Portugal tirava chorudos proventos das úberas e vastas terras de lavoura que possuia e que produziam excedentes de bens essenciais, nomeadamente cereais.
Prossigo, dizendo que, depois do vexante desastre de Badajoz, o fundador da dinastia de Borgonha nunca mais foi o mesmo homem. Ao que tudo indica, o osso fracturado (provavelmente um fémur) nunca se soldou convenientemente, o que obrigou o rei a coxear e a sofrer desse aleijão para o resto da sua vida. D. Afonso Henriques -excepcional homem de acção- também nunca mais pôde montar a cavalo e essa sua inaptitude frustrou-o, ensombrando-lhe a existência. Testemunhas coevas referiram que, na sequência do acidente sofrido em Badajoz, el-rei passou horas a fio acabrunhado, sentado num cadeirão. E que quando necessitava absolutamente de se deslocar, o fazia nos braços de um criado ou era transportado numa improvisada liteira. Situação insuportável, com certeza, para quem, pouco tempo antes, de montante em punho, ainda passeava a sua aura de invencibilidade pelos campos de batalha do ocidente ibérico.
Apesar do dislate de Badajoz e das suas funestas consequências para o reino de Portugal e para a saúde e prestígio de D. Afonso Henriques, o soberano ainda sobreviveu (contrariamente àquilo que prognosticaram alguns dos seus contemporâneos) uma quinzena de anos. A sua quase lendária força anímica acabou por se sobrepor, pouco a pouco, aos problemas de ordem física e psicológica gerados pela sua forçada inacção. O fundador da nacionalidade viria a falecer em Coimbra, a 6 de Dezembro de 1185, indo a enterrar –por sua expressa vontade- no mosteiro de Santa Cruz daquela cidade. Antes, porém, de deixar este vale de lágrimas, o «Conquistador» ainda teve a ocasião de experimentar dois momentos de intensa alegria : o primeiro, foi quando ele pôde comprovar que o seu filho primogénito e herdeiro natural da coroa –o príncipe D. Sancho- lhe seguia as pisadas, ao revelar-se um destemido guerreiro e um político avisado, preocupado com a dilatação do território nacional e com a administração do reino; o segundo momento de grande felicidade, surgiu-lhe quase no fim da vida, quando viu, enfim, reconhecida por Roma a sua dignidade real. Com efeito, pela bula ‘Manifestis Probatum’, datada de 23 de Maio de 1179, o papa Alexandre III outorgou-lhe oficialmente o título de rei de Portugal. Título ao qual D. Afonso Henriques já fazia jus, desde aquele memorável ano de 1143, em que o imperador Afonso VII de Leão e Castela se viu constrangido a renunciar à sua suserania sobre o condado portucalense. (M.M.S.)

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